Luiz Henrique Silva Moreira


A EDUCAÇÃO POPULAR NO MUNDO GREGO ANTIGO


Após o fenômeno do Marxismo, se tornou praticamente impossível não levar em conta conceitos como Classe e Luta de Classes ao se desenvolver trabalhos em áreas referentes às Ciências Humanas. Com a História o evento não foi diferente, ao passo que Marx em certa instância provoca uma revolução historiográfica e acaba por anunciar uma era de Filósofos da História e Historiadores Marxistas que acabariam por revolucionar as ciências humanas como um todo. Quando se relaciona os conceitos referentes às classes com conceitos referentes a educação na Antiguidade, para além muitas outras reflexões, nos deparamos com um fator curioso, partindo do pressuposto de que a educação e ensinamentos eram voltados para uma pequena parcela abastada da população, como durante toda era gloriosa Atenas educou aqueles que pertenciam às classes ditas como inferiores? O presente trabalho se propõe a responder esta indagação, a partir de questões relativas a Filosofia Grega e ao Teatro Grego. Entretanto, para conseguir responder a tal questionamento de forma satisfatória, se torna necessário em um primeiro momento definirmos o conceito de educação e explicitar alguns pontos no que concerne ao transporte do conceito de classe de Marx às sociedades antigas, visando evitar anacronismos e outras contradições.

A delineação do conceito de classe no mundo grego
Para dar conta da definição e aplicação do conceito de classes nas sociedades do mundo grego, escolhemos o historiador marxista britânico Geoffrey Ernest Maurice de Sainte Croix, que integra a geração de historiadores marxistas e teóricos da história do século XX, mas que talvez pela especificidade de sua pesquisa, acaba por não ser tão utilizado no Brasil. Ao se referir à G.E.M. de Ste. Croix e a outros marxistas de sua geração, o também marxista Perry Anderson afirmou que “a exposição direta e a discussão sustentada de conceitos marxistas num alto nível de rigor analítico no livro de Ste. Croix não encontra paralelo na história de seus pares” (Apud Silva, 2009 p.1). Geoffrey de Ste Croix, apesar de ter iniciado sua vida acadêmica aos 40 anos, teve vários trabalhos importantes para o estudo da História e Historiografia Antiga, como seu primeiro livro 'The Origins Of The  Peloponnesian War' (1972), entretanto, no que concerne ao tema do marxismo e a antiguidade clássica seu grande trabalho foi o ganhador do "Deutscher Memorial Prize" em 1982, escrito em 1981, que se trata do 'The Class Struggle In The Ancient Greek World'. Essa obra, a qual faremos menção para delinear as Classes no Mundo Grego Antigo, traz uma visão de como a exploração do trabalho livre e o não-livre podem caracterizar uma luta de classes propriamente dita e que, ao contrário do que afirmam outros marxistas, não se necessita necessariamente de uma consciência de classe, por parte dos mesmos, para ocorrer uma disputa de classes.  Deve-se ressaltar que o autor não excluí a consciência de classe em si, mas apenas à aborda a partir, ou da questão do status, ou da questão da virtude, como exemplo o autor demonstra que mesmo entre os gregos que moravam na Pólis, sendo essa um local mais urbanizado, e os gregos que moravam nas áreas mais rurais as Chora, havia uma moral superior de um tipo simples que organizava as classes mesmo em graus maiores ou menores da mesma cultura (CROIX, 1981 p. 9).

"Eu não vou alegar que classe é uma entidade existente objetivamente em seu próprio direito, como uma "Forma" Platônica, a natureza a qual meramente temos que descobrir. A palavra vem sendo utilizada por historiadores e sociólogos em tudo com diferentes sentidos, mas eu acredito que a forma a qual Marx escolheu para utilizar é a mais produtiva, para sua própria sociedade e para todas antecedentes acima do nível primitivo, incluindo a sociedade Grega e a Romana." (Tradução livre) (CROIX, 1981 p.32)

E Ste. Croix complementa que para ele:

"Classe em um conceito geral (distinguindo de um conceito particular de classe) é essencialmente uma relação, e classe no senso de Marx deve ser compreendido em uma conexão estreita com o seu conceito fundamental de "As relações de produção": as relações sociais em que homens entram no processo de produção, nas quais encontram expressões legítimas para o amplo grau entre as relações de propriedade ou relações de trabalho." (Tradução livre) (CROIX, 1981 p. 32)

A obra de Ste. Croix também alerta para outras categorias de classe tidas como intermediárias, como os "pequenos trabalhadores livres" e que também há variações dentro da própria 'classe', e que pela dificuldade de definição acabou por ser tratada como uma 'sociedade única' pelos historiadores e raramente problematizada.

O Teatro como instituição educadora das massas
Tendo em vista então que o mundo grego se organizava também em um sistema de classes, mas que não era restrito ao espaço físico seja em relação à Pólis ou a Chora, pois como nos mostra Tucídides "Os homens é que são as cidades, não os muros e nem os barcos sem homens" (Apud FINLEY, 1988). Somos levados então à outra indagação, à qual para responder nos remeteremos ao objetivo principal do presente texto que é pensar a educação, o que une os gregos? Ou melhor o que uniu o mundo grego, não pensando somente nos gregos em si, mas também nos estrangeiros, as mulheres, crianças e os escravos? Esses que por vezes se encontravam em classes sociais quase que equivalentes.

Para responder a esse problema nos remeteremos ao primeiro sentido do termo Lógos, que é derivado do verbo Légein, ou seja, a linguagem (GOBRY, 1927). Era a linguagem que unia o mundo grego e que dava luz ao conceito do ser civilizado.

Entretanto, como foi colocado anteriormente a questão central do trabalho é responder como uma instrução com base no Lógos abarcava as camadas, ou as demais classes que previamente nos preocupamos em definir? Como se tornou possível tão acesso à educação, novamente atentando que não no sentido formal o qual conhecemos hoje, mas sim falando em 'conhecimento filosófico', sendo que é de conhecimento notório que os debates acerca da filosofia estavam restringidos aqueles com condições sociais para mantê-los, ou seja, os nobres. Além dos vários artificies de introdução de estrangeiros, trabalhadores não-livres e pequenos trabalhadores livres, pretendemos debater a questão do Teatro como instituição educadora da população, já que ao menos na Grécia Clássica não se pensava diretamente na 'educação' aqui no sentido de instrução da população como um todo, fato esse que só passa a se alterar a partir da Época Helenística de acordo com Henri Marrou (1973).

"Foi em Atenas, a cidade-estado democrática por excelência, que produziu e, em sentido estrito, patrocinou a tragédia, uma forma de arte que, em breve, após Homero, ocupou lugar de honra, acima de toda a poesia, não apenas entre os Atenienses, mas entre todos os Gregos em geral." (FINLEY, 1988 p. 86)

Apenas a partir desse pequeno trecho do Professor Finley já se torna possível ampliar o debate acerca do teatro grego para o campo da educação popular. Atenas se tornou democrática por excelência devido ao fato da virada racional que ocorreu na mesma entre os séculos VI e V a. C., virada racional essa que resulta de uma filosofia humanista que surge com os Sofistas e com Sócrates. De acordo com Gazolla (2001, p.17) se tem a encenação do primeiro drama trágico, durante a tirania de Psístrato, como uma tentativa de popularizar seu governo, de acordo com Albin Lesky (1989), Jacqueline de Romilly (2011) e Pierre Grimal (2002), ocorreu em 534 a. C. a encenação do primeiro drama trágico. Sendo assim, alargando um pouco mais o debate, se torna possível compreender que o teatro e todo em festival em volta do mesmo serviu como um mecanismo ideológico e de instrução das outras camadas da sociedade.

É necessário antes de tudo levar em conta o que "ir ao teatro" representava para os gregos e como tal atividade se denotava na Atenas Clássica. As encenações ocorriam em festas anuais, em que o Estado se encarregava de prever e organizar a apresentação, sendo um dos altos magistrados da cidade quem devia escolher os poetas e escolher, igualmente, os cidadãos da elite que se encarregariam dos custos para o festival e para a encenação das peças. Durante o século de Péricles, os mais pobres detinham o direito de cobrar uma pequena ajuda econômica para que pudessem participar das celebrações (ROMILLY, 2011, p.16-17). Tal constatação nos mostra que não se tratava de um evento dedicado inteiramente aos ricos, mas pelo contrário, era um evento para a Pólis, para demonstrar que o povo também era parte da mesma, mas acima de tudo ensinar ao povo o que significava ser parte da Pólis.

"O número de participantes activos nunca era inferior a 1000, homens e rapazes, que dedicavam imenso tempo a ensaios prévios, e o teatro, quando cheio, abrangia cerca de 14000 espectadores, sentados em filas ascendentes, ao ar livre, olhando para o espaço de dança (denominado orquestra, apenas um recinto circular livre e para o palco que lhe ficava atrás, com um simples pano de fundo e cenários rudimentares. Este esforço repetia-se todos os anos, mesmo durante a Guerra do Peloponeso, e sempre com peças novas." (FINLEY, 1988, p. 87-88)

Tendo em vista esses dados se torna possível falar em uma educação filosófica para as massas, fato que se torna mais claro quando paramos para pensar quem eram aqueles que escreviam tais peças. Se tratavam de homens que tinham acesso aos debates filosóficos, seja nos banquetes ou na Ágora, eram aqueles que competiam por suas tragédias. Como Ésquilo, combatente de Maratona e Salamina, que já tem sua primeira vitória em 484 com sua peça 'Persas', o fato que se o mesmo era soldado também participava da vida política, e por sua vez teve acesso à educação e o conhecimento filosófico da época. Ou como o culto Sófocles, que devido à falta de vocação política se dedica a tragédia. Esses dois grandes autores trágicos servem de exemplo de como no começo os escritores trágicos eram de uma camada da sociedade que teve acesso à um estudo formal, filosófico, e refletiam tal fato em suas peças.

E o último, mas não menos importante, grande precursor da tragédia que por ser de origem modesta foi por vezes ridicularizado e que apresenta isso em sua arte, se trata de Eurípides que é um grande exemplo de como até mesmo os mais modestos aprendiam com o teatro a ponto de competir e ganhar, por mais que a carreira do mesmo fosse muito contestada.

"Desse modo a tragédia teve a função de reorganizar comportamentos, tendo em vista a Pólis, sendo assim, através da tragédia o Ethos aristocrático que detinha pressupostos individualista é reformulado, em prol das necessidades da cidade-estado que exigiam compromisso e cooperação para que a democracia pudesse se efetivar. Através do palco da tragédia sai de cena o Ethos da literatura oral e cria-se o Ethos da literatura escrita, ou, o Ethos da Pólis." (MOREIRA, 2017, p. 23)

Mas talvez o grande ponto que nos permita relacionar o teatro antigo como uma instituição educadora das massas, é o fato de que a partir de tal, a revolução humanista, que se inicia com os filósofos, abarca toda a sociedade ao passo que distancia as explicações míticas dos problemas sociais, e insere tais questões como relativas às instituições citadinas, em certa medida é possível afirmar que nasce o animal político de Aristóteles, ou Homem da Pólis.

Se deixa claro que se trata apenas do começo do tratamento de meios culturais como instrumentos de educação e instrução das massas, se deixa claro que aqui não se faz juízo de valor observando que a maneira como tal instrumentação da cultura pode conter objetivos de quem o faz, fato o qual Platão já atentou na antiguidade ao negar os poetas em sua República ideal.

Mas não se pode negar que tanto no Mundo Grego, no Mundo Romano e durante a era do Iluminismo o teatro foi um meio pelo qual a moral social se moldou:

"(...) as tragédias de Séneca, por exemplo, e as de Eurípides suscitaram, mesmo durante os séculos cristãos, reavaliações e até crises de consciência que, sem elas, teriam sem dúvida tomado outro curso. Em todos os tempos, o teatro foi um meio poderoso de acção; serve de veículo a ideias e «mentalidades» que o palco propaga, difunde e impõe com uma eficácia e um alcance maiores que os do livro." (GRIMAL, 1978, p. 9)

Percebe-se então que tanto no Mundo Grego como no Mundo Romano, estar civilizado esteve sempre relacionado ao idioma que se falava, e por mais que houvesse vertentes populares da língua grega e do latim, era no teatro que as pessoas eram apresentadas a conceitos centrais do idioma e da sociedade em si, preceitos esses que quando seguidos davam ao homem do mundo antigo a alcunha de civilizado. Se admite que ao falar em teatro se fala apenas de uma das instituições responsáveis por moldar o homem do mundo antigo, mas que se vê como essencial quando se percebe que as outras instituições de formação como exército ou a religião eram demasiadamente descentralizadas, no sentido da ideologia pregada, para lapidar o homem civilizado. Fato esse que muda a partir da ascensão da religião cristã, no entanto, por mais que o cristianismo centralize em si as outras esferas de poder e acabe por mudar o conceito de ser civilizado por ser cristão, a religião não muda o teatro que segue ensinando o povo e levando consigo preceitos filosóficos que até os dias de hoje levam o homem a se questionar sobre o mundo a sua volta.

Conclusão
O objetivo desse texto, como um todo, pra além de ajudar a alargar a percepção do que se entende por Educação e Ensino, é mostrar que mesmo sem o que temos por "consciência de classe", as sociedades que antecederam a era industrial também se organizavam em graus, o quais com a ajuda de Ste. Croix podemos perfeitamente chamar de classe. E talvez a partir de uma visão mais Thompsoniana, buscou-se mostrar como conceitos culturais sempre acompanham as questões de classe.

Sendo assim se têm o intuito de sair do previsível, e pensar em educação apenas em meios destinados ao cultivo do conhecimento, pensar também em como se origina, cultiva e se modifica algo que tomamos a liberdade de chamar de "conhecimento popular", pensando assim como as massas se educam. Talvez a partir de então buscando um exercício da consciência histórica de Jörn Rusen, possamos refletir acerca da cultura de massa da sociedade em que estamos inseridos, e que como aqueles de classes mais baixas, nessa sociedade na qual ao contrário da grega já temos o debate acerca da consciência de classe, acabam se educando e se é que se educam realmente.

Referências
Luiz Moreira é graduando de História pela Universidade Estadual do Paraná - Campus União da Vitória.

CROIX, G. E. M. Ste. The Class Struggle in the Ancient Greek World: from the Archaic Age to the Arab Conquest. Ithaca, NY: Cornell University Press

FINLEY, Moses I. Os Gregos Antigos. Lisboa: Edições 70, 2002.

GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: Ensaios sobre aspectos do trágico. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2001.

GRIMAL, Pierre. O TEATRO ANTIGO / Pierre Grimal; tradução de Antônio M. Gomes da Silva. - Lisboa: EDIÇÕES 70, 2002.

GOBRY, Ivan. Vocabulário grego da filosofia / Ivan Gobry; tradução Ivone C. Benedetti; revisão técnica Jacira de Freitas; caracteres gregos e transliteração do grego Zelia de Almeida Cardoso. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

LESKY, Albin. A Tragédia Grega / AlbinLesky; tradução de J. Guinsburg, Geral Gerson de Souza e Alberto Guzik. - São Paulo: EDITORA PERSPECTIVA S. A., 1996.  

MOREIRA, Luiz. Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος: OS GREGOS ANTIGOS E A ARTE DA PALAVRA. 2017. 49 f. Monografia (Graduação em História) - Universidade Estadual do Paraná, União da Vitória, 2018.

ROMILLY, Jacqueline de. Compêndio de literatura grega / Jacqueline de Romilly; tradução Leonor Santa Bárbara. Lisboa. Edições 70, 2011.
______. La tragedia griega / Jacqueline de Romilly; tradução de JordiTerré. - Madri: EDITORIAL GREDOS, S.A., 2011.


3 comentários:

  1. Luiz, penso que o seu texto é muito interessante acerca dessa temática da educação e ensino numa sociedade grega, em que seu desenvolvimento já era diferenciado por classes sociais. Para Marx, de forma geral, a noção de classe está associada à posição que o individuo ocupa no processo de produção. Neste sentido, gostaria que você explicasse melhor como a noção de classe se articula em tempos do mundo grego antigo.
    Áquilas Mendes

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    1. Obrigado caro Áquilas,

      Em relação a sua pergunta, seguindo o pensamento de Geoffrey de Sainte Croix, antes de pensar na questão da produção, eu gosto pensar na questão das relações sociais, a partir disso penso que classe é definido através das relações em um primeiro momento, para depois pensar o que se produz nessas relações. Por exemplo, durante o processo do período que definimos como Pré-Homérico, houve uma grande leva migratória para o continente, onde esses povos travaram uma relação de legitimidade com a terra através da religião e da violência também, onde houve uma hierarquização antes de se pensar a produção, porque a terra que era o meio pelo qual disputavam definiria isso. Desse modo a sociedade passa se delinear através dos meios de produção, mas em genos (que pode ser a nossa primeira noção de classe nesse mundo grego) que eram comunidades pequenas que se mantinham de forma independente e que tinham por base, aquilo que o próprio Marx denominou, Modo de Produção Asiático, onde a terra era pertencente a todos e se visava apenas subsistência. Tal estrutura de relações sociais que delineiam as relações de produção só vai se abalar quando o crescimento demográfico obrigar os genos a entrarem em conflitos entre si pela busca de recursos. A partir de então surge uma classe no conceito que conhecemos "os donos das terras" e os thetes (trabalhadores sem terra).
      O último apontamento que quero fazer é que mesmo os eupátridas, descendentes daqueles que detinham as terras e que acumularam mais terras (obs: terras férteis em uma região quase infértil em sua totalidade), acumulando domínio político-econômico, eles ainda viram necessidade de um elemento a mais para se diferenciar dos demais, e esse elemento foi a religião, foi o culto iniciado por aqueles que migraram lá no período Pré-Homérico, e dai surge a ideia de um antepassado herói/deus, e que torna tal família divina.
      Não sei se consegui solucionar a sua dúvida, mas é uma visão pessoal e por isso eu opto pelo Sainte Croix, porque em parte concordo com seus apontamentos.

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  2. Parabéns Moreira, gostei muito do texto.
    Você afirmar no seu texto que "no teatro que as pessoas eram apresentadas a conceitos centrais do idioma e da sociedade em si, preceitos esses que quando seguidos davam ao homem do mundo antigo a alcunha de civilizado". O papel do teatro no ensino da Grécia era apenas algo referente ao conceito de civilizado ou tinha outras funções?

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