Leonardo Carnut e Áquilas Mendes


ENSINO DA HISTÓRIA DA REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA E SUAS LIÇÕES POLÍTICAS: OS CLÁSSICOS DA SAÚDE COLETIVA COMO FONTE



Introdução
O estudo da Reforma Sanitária Brasileira (RBS), no âmbito das ciências da saúde é um capítulo fundamental do que se considera como o conteúdo essencial da área de “História da Saúde Pública/Coletiva” (PAIM, 2008). Em que pese a relevância do tema, há uma tendência em focar na trajetória normativa das Políticas de Saúde em detrimento das escolhas políticas realizadas pelo movimento sanitário na década de 70-80 (TEIXEIRA, 1998).

Tradicionalmente, há uma visão romântica, e até saudosista do Movimento da Reforma Sanitária como fonte de inspiração socialista que gradualmente se perdeu ao longo da implantação do SUS no país (TESTA, 1995; CARNUT, 2017). Entretanto, por este conteúdo ser pouco trabalhado nas graduações de saúde (CARNUT, MENDES, MENDES, 2018), adentra-se muito superficialmente no intenso cenário de disputa que fez com que a tese socialista, logo de partida, fosse refutada em nome de uma ideologia política socialdemocrata (AROUCA, 1975; OLIVEIRA, 1987; PAIM, 2008).

Assim, este ensaio tem como objetivo resgatar os argumentos sobre a história da Reforma Sanitária Brasileira em dois autores de períodos sócio históricos distintos, tidos como fontes essenciais para ajudar a compreender as escolhas políticas realizadas e tirar lições para qualificar o ensino da história da saúde coletiva/pública no âmbito das profissões da saúde.

Percurso metodológico
Foi realizada uma análise de conteúdo (BAUER, 2000) de dois textos de autores clássicos da Saúde Coletiva que analisaram a Reforma Sanitária Brasileira em dois períodos distintos: a) um primeiro texto, relacionado ao “período da reforma propriamente dita” (1987), do sanitarista Jaime de Oliveira publicado na Revista Saúde em Debate intitulado: ‘Para uma teoria da reforma sanitária: “democracia progressiva” e políticas sociais’, e, b) um segundo, relacionado ao “período pós-reforma” (2008), do professor Jairnilson da Silva Paim oriundo de sua tese de doutorado: ‘Reforma Sanitária e Revolução Passiva no Brasil’.

Para fins analíticos, tomou-se como unidade textual de análise os excertos (BAUER, 2000) que versavam sobre aspectos políticos fundamentais para compreensão da lógica do debate em direção à perspectiva socialista. Nesse sentido, todos os textos foram lidos na íntegra e deles extraídos esses excertos, que nesse estudo, compuseram o “corpus” da análise. A partir de então, foi feita a discussão dos argumentos apresentados pelos autores como forma de reconstruir a história das escolhas políticas que obtiveram a hegemonia nos membros da Reforma Sanitária para ressaltar a importância desse conhecimento no ensino da história da saúde coletiva/pública no Brasil (BADINELLI, JUNQUEIRA, 2012).

Primeira fonte - Oliveira: uma crítica contumaz, porém, conciliatória
No calor da RSB, diversas teses foram sendo elaboradas, ao passo que os reformistas, na tentativa de ler “o social” de forma mais acurada, disputavam por uma “Teoria da Reforma Sanitária”. A intenção era compreender melhor o momento social vigente e, a partir dessas análises, guiar a luta política pela construção do direito à saúde no Brasil.

Nesse bojo, emergiu o papel significativo de Jaime de Oliveira. Oliveira é médico e fez mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Trabalhou no Departamento de Administração e Planejamento, ENSP/FIOCRUZ e contribuiu para compreender o processo de Reforma Sanitária através de duas obras fundamentais: ‘Interesses Sociais e Mecanismos de representação: a Política de Saúde no Brasil pós-64’ de 1983 e ‘(In) Previdência Social: 60 anos de História da Previdência no Brasil’ de 1986.

Oliveira (1987) era de uma corrente contra hegemônica sobre a tese que guiaria o processo da Reforma Sanitária. Em um lado, havia aqueles autores que apostavam na “institucionalidade estatal” tais como Sonia Maria Fleury Teixeira (TEIXEIRA, 1998), Sérgio Arouca (AROUCA, 1975), Roberto Passos Nogueira (NOGUEIRA, GOMES, 2012), e, de outro lado, os autores que criticavam a institucionalidade estatal, tese na qual Oliveira era filiado.

Nas palavras do autor:

“[...] no meu entendimento, o conjunto de proposições que gira em torna da ideia de Reforma Sanitária tem seu significado inovador dado pelo fato de que estas proposições apontam numa direção que se situa (e hoje pode situar-se) para além destas preocupações e de suas autolimitações. Ou seja, “se situa para além dos esforços de resolução de uma crise de legitimidade e fiscal do Estado” [grifo nosso]. E, portanto, para além dos esforços de autoreprodução deste Estado e das condições econômico-sociais e políticas que ele ajuda a sustentar.” [Oliveira, 1987, p.203].

É possível perceber que, ao considerar uma análise para além da “resolução” de uma crise de legitimidade (aí se referindo ao Golpe Militar impetrado em 64 que promulgou um governo ilegítimo do ponto de vista dos procedimentos democráticos burgueses) e da crise fiscal (referindo-se ao período em que a economia brasileira sofre uma inflação de 80% ao ano, o crescimento do produto nacional bruto é baixíssimo 1,6% ao ano, e as taxas de investimento no país são quase zero), Oliveira tem em mente a crítica ao Estado como operador das mudanças defendidas pelos autores que apoiavam a tese da institucionalidade.

Fiel à compreensão marxista do fenômeno, Oliveira vai resgatar a noção de “democracia progressiva” advinda da elaboração gramsciano-togliattiana de “passagem para o socialismo” na qual conjuga a contradição “conquista do Estado” e a “Dissolução/Quebra do Estado”. Nesse sentido, o autor demonstra que, sem a compreensão crítica sobre o papel do Estado no asseguramento das condições capitalistas de produção da saúde, não haverá a operação de um plano de ação para Reforma Sanitária que avance em direção ao socialismo. Quaisquer outras formas de atuação caíram na contradição inerente da socialdemocracia (ou seja, realizar pequenas ‘reformas’, através da conciliação/negociação entre os interesses bastante distintos das frações de classes).

“[...] o que queremos frisar é que a noção de guerra de posição / democracia progressiva inclui a noção marxiana-lenista de “quebra do Estado”. Com a diferença (vis à vis uma situação de guerra de movimento) “de que esta “quebra” é pensada, aqui, como algo que se realiza (tem que se realizar) anteriormente a tomada do poder político do poder de estado” [grifo nosso].” [Oliveira, 1987, p.204].

As categorias “guerra de movimento” e “guerra de posição” permitem conduzir a perspectiva de uma “democracia progressiva” em virtude da organização de uma luta política pelo avanço na tomada de poder do Estado. Assim, depreende-se da leitura do autor que a “guerra de posição”, ou seja, o contínuo movimento de aparelhamento do Estado com militantes da reforma sanitária (no caso do momento sócio histórico em questão) representariam resistências concretas à forma jurídica e política do Estado no processo de condensação de forças que o leva em direção à sustentação da ordem capitalista. Em contrapartida a ‘guerra de movimento’ por fora do aparelho do Estado, através da militância sanitária, deveria articular-se com outras frentes setoriais a ponto de garantir unidade de luta política suficiente para permitir a derrocada do Estado e formular as bases de um novo modo de produzir. Como o autor aponta:

“Ou seja, “nos encontramos agora no núcleo da distinção entre guerra de posição e guerra de movimento” [grifo nosso]. Uma vez que, como se sabe, a primeira corresponde a uma proposição estratégica orientada para os contextos nos quais o Estado capitalista já adquiriu claramente sua forma “ampliada”. Ou seja, estendeu-se aos aparelhos privados e se tornou hegemônico, dirigente, mais do que meramente dominante e coercitivo” [Oliveira, 1987, p.205].

Nesse momento o autor assume que a posição dos sanitaristas a época era na intersecção entre “guerra de posição” e “guerra de movimento”. Em sua perspectiva, o alcance de uma “democracia progressiva” só poderia ser realidade através do enfrentamento das forças que operam o Estado (na sua perspectiva “ampliada”) em destituir os elementos concretos (formas privadas de prestação da saúde, representações sociais sobre a saúde pública e mercantilização do trabalho em saúde) para congregar força social suficiente em direção à “quebra” do aparelho do Estado.

“[...] a ideia de guerra de posição, e sua sucedânea (democracia progressiva) apontam, conjuntamente, no sentido da necessidade de promover, naqueles contextos, uma ação política, e ideológica (moral, cultural) ampla, que inclui, além dos problemas (por si só complexos) ligados à “quebra” do aparelho de estado, todo o processo de luta pela hegemonia nos aparelhos, públicos e privados, de hegemonia e coerção”. [Oliveira, 1987, p.205].

Assim sendo, Oliveira tece, em nossa opinião, a mais pesada crítica ao movimento sanitário e a Saúde Coletiva na atualidade: a desconstrução da política pública como realizadora das funções sociais da saúde (ou como descrito por outros autores (CORREIA, 2015), como promotora de um “bem comum”). Em que pese a realização dessa crítica contumaz, o autor percebia que as condições objetivas do processo histórico naquele período encaminhavam a ação política para em outro sentido. Nesse âmbito, Oliveira (1987) interpela:

 “[...] se as “políticas públicas” jogam um papel razoavelmente claro como instrumento de manutenção e reprodução da ordem política e econômica dadas, como devem ser encaradas, alternativamente, num projeto de transformação radical, revolucionária (embora “progressiva”) deste quadro?”  [grifo nosso] [Oliveira, 1987, p.206].

Assim, em uma tentativa de conciliar a teoria da Reforma na qual elaborava com o “movimento do real”, Oliveira (1987) realiza sua crítica ao movimento histórico: admitiu que a tese da institucionalidade findaria por guiar o processo de Reforma Sanitária e conduziu o debate afim de conjugar as duas propostas em uma espécie de (sín)tese.

“a ideia de que a mera incorporação de novos (e mesmo heterodoxos) atores ao “policy-making” governamental, “sem que esta incorporação se faça acompanhar de uma problematização e um enfrentamento dos temas básicos da “quebra” do Estado e da luta pela hegemonia, apenas nos levará, na melhor das hipóteses, a repor, de uma forma modernizada e atualizada, a estratégia socialdemocrata de mera “ocupação” e gestão “humanizada” do Estado capitalista” [grifo nosso], com as conhecidas consequências políticas deste fato” [Oliveira, 1987, p.208].

Vive-se, hoje, as consequências políticas desse fato. Conforme previsto por Oliveira (1987) amarga-se, hoje, o desmonte a passos largos do SUS, especialmente no que tange a sua forma eminentemente “pública” (MENDES, 2015; CARNUT, NARVAI, 2016). Mais que uma síntese, Oliveira foi certeiro em combinar fidelidade teórica e leitura apropriada do movimento da história. Não é de se surpreender que essa combinação tenha repercussões tão assustadoras para os estudantes e profissionais da saúde quando se deparam com os acontecimentos atuais e a análise social de precisão “cirúrgica” que foi feita por Oliveira nos (des) caminhos que o SUS e suas políticas públicas tomaram ao longo desses 30 anos.

Segunda fonte - Paim: revisitando a Reforma Sanitária Brasileira 20 anos depois
É largamente reconhecido no campo da saúde coletiva, a contribuição à reflexão sobre a natureza e a trajetória do movimento da RSB por parte do médico Jairnilson Paim. Atualmente, Paim é professor de política de saúde do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, doutor em saúde pública e mestre em medicina. Nos debates e reflexões críticas acerca da implantação do SUS não se pode furtar das contribuições que Paim vem propiciando ao campo.

Na realidade, esse autor, em seu livro que teve como fonte sua Tese de Doutorado, ‘Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica’, 2008. Sua obra apresenta uma conclusão relacionada à revisão do conceito de Reforma Sanitária e com acirrados comentários sobre seus desafios futuros. De forma bem crítica, Paim conclui “que a Reforma Sanitária representa uma reforma social inconclusa, passando por diversos momentos de um ciclo: era uma ideia que ia se plasmando na medida em que se procedia a uma crítica ao sistema de saúde durante a ditadura” [Paim, 2008, p.291].

Paim esclarece que a Reforma Sanitária foi originária de um movimento ancorado no âmbito da sociedade civil, o que se deve valorizar como um grande atributo para a assunção da saúde enquanto um direito social. Contudo, ao longo dos anos 1990, assiste-se ao afastamento dessa construção, associando-se de forma muito intensa à luta institucional, especificamente num processo de valorização do espaço no interior do Estado brasileiro. Paim esclarece:

“Enquanto as inciativas anteriores de reforma da saúde estavam ligadas ao Estado (com foco nos portos e centros urbanos), quando não desencadeadas fundamentalmente pela ação estatal, a Reforma Sanitária ou Reforma Democrática da Saúde, objeto desta investigação nasceu da sociedade civil e só, posteriormente, partiu para a conquista do Estado:...” [Paim, 2008, p.293].

É importante reconhecer os limites que as políticas públicas dispõem, especialmente no contexto do capitalismo contemporâneo, em que o Estado se vê cada vez mais associado aos interesses das reformas neoliberais sob o ditame do capital. Tem sido frequente no Estado brasileiro, a adoção de políticas econômicas restritivas, processos de liberalização e abertura de mercados, com o avanço de privatizações, em geral e na saúde em particular, especialmente ao longo dos anos 1990, 2000 e 2010. 

Parte-se do pressuposto que o Estado não pode ser tomado como algo externo ao capital, especialmente aos efeitos atuais da dinâmica do capitalismo contemporâneo e sua crise com ataques aos direitos sociais. Trata-se de considerar que a relação Estado-capital é orgânica. Isto significa entender que não existe separação entre o Estado e o capital, em que as relações entre eles não são somente relações de exterioridade.

A Forma Estado deriva das contradições da dinâmica do capital (CALDAS, 2015). Assim, o Estado não constitui mero resultado da vontade da classe dominante, mas sim de um determinado modo de produção e das relações sociais que lhe são inerentes. Daí, entendermos os sentidos das contrarreformas que o Estado capitalista vem adotando no contexto do capitalismo financeirizado e seus efeitos na saúde, em particular.

Assim, deve-se reconhecer a importante reflexão crítica de Paim quando menciona o direcionamento estreito que o movimento da Reforma Sanitária tomou, distanciando-se de um projeto societário para aquele que privilegia o espaço de atuação no ambiente estatal. Paim adverte que:

“[...] diversos estudos, investigações, ensaios, “position papers”, debates e reflexões empreendidos sobre a RSB nas últimas décadas fixaram-se na sua dimensão institucional, ou seja, no SUS, negligenciando outros elementos fundamentais do projeto original.” [Paim, 2008, p.293].

Assiste-se com perfeita clareza na atualidade um movimento de duas vias que revela a problemática que indicamos. De um lado, presencia-se um SUS cada vez mais distante de seu caráter emancipatório – “civilizatório” e “socialista” - que o formou, de outro, destaca-se uma retórica da Reforma Sanitária bastante afastada nos propósitos políticos que tem conseguido formular, reforçada por debates técnico-administrativos. Paim é enfático nesse propósito:

“Ainda assim, no final da década de oitenta, admitia-se que o processo da Reforma Sanitária supunha o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e o percurso da sua superação para o socialismo, bem como a conquista da cidadania plena e a democratização da vida social. “O trem da história, porém, parece ter seguido por outros trilhos” [grifo nosso][Paim, 2008, p. 293-294].

É interessante notar como essa breve passagem evidencia os rumos frágeis que o Movimento da Reforma Sanitária seguiu, encerrando-se no caminho institucional e setorial. Paim não poupa comentários críticos a esse processo e chama atenção de todos do campo da saúde coletiva para uma necessária reflexão crítica. Diz ele: 

 “[...] o confinamento da RSB à dimensão setorial e a submissão do SUS às “manobras da política” [...], tornando-o refém do clientelismo e do partidarismo, representam sérias limitações a exigir uma avaliação crítica.”  [Paim, 2008, p.296].

O desenvolvimento do SUS ao longo de sua existência de 30 anos foi marcado por tensões no âmbito das políticas governamentais como um todo, não restritas ao setor saúde. Vários aspectos vêm enfraquecendo a capacidade de arrecadação do Estado brasileiro e prejudicando, por exemplo, o financiamento do SUS (MENDES, 2016).

Sabe-se que o enfrentamento à essas medidas não podem passar por uma luta apenas concentrada no âmbito do setor saúde. É preciso reconhecer que o seu enfrentamento exige uma atuação mais ampla de vários setores e de distintos seguimentos do movimento social não restritos à saúde. Paim corrobora com essa visão e insiste no seguinte alerta:

“[...] os resultados apresentados no presente estudo indicam que as condições concretas em que a RSB foi implantada reduziram a sua práxis a uma reforma parcial setorial, ilustrando algumas das consequências da revolução passiva.” [Paim, 2008, p.300].

Paim não economiza nas suas palavras críticas e que devem servir de reflexão dos jovens sanitaristas: “Mesmo não sendo pouco, o que se desenvolveu no país foi uma reforma parcial de natureza setorial e institucional traduzida pela implementação do SUS” [Paim, 2008, p.302]. Ainda, esse autor acrescenta de forma enfática: “em linhas gerais, esta é a tese defendida: a Reforma Sanitária Brasileira reduziu-se a uma reforma parcial, inscrita nas suas dimensões setorial e institucional com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). O resto é “retórica[grifo nosso].” [Paim, 2008, p.309].

Não resta dúvida, que a contribuição crítica de Paim acerca do sentido do caminho do movimento da Reforma Sanitária impulsiona uma reflexão mais aprofundada dos limites de implantação da saúde pública universal pela perspectiva do Estado e de uma restrição de defesa da saúde ao campo setorial. Parece que o movimento deve ser outro, isto é, apostar na inversão da lógica de trajetória desenvolvida e fortalecer uma construção por uma via de tática radical, visando a defesa de uma saúde popular.

Considerações Finais
O ensino da história tem como objetivo aprender com o passado para iluminar as decisões do presente sobre o futuro. O futuro da Saúde Coletiva e das forças sociais que defendem a saúde como direito social depende das lições aprendidas com o reexame dos clássicos e da história que registraram sobre esse movimento.

É possível dizer que os dois clássicos analisados convergem ao relatarem que o movimento da Reforma Sanitária, nunca vislumbrou uma “revolução” (não à toa se batizada como “reforma”). A tese socialista foi abandonada gradualmente em função das condições objetivas impostas e o Estado se tornou a aposta do movimento restringindo-se a operação das políticas públicas no campo setorial.

Assim é possível dizer que sem um ponto de inflexão nessa história, por meio minimamente de uma autocrítica ao processo histórico construído e uma mudança tático-operacional que atue na raíz dos problemas elencados, inevitavelmente o Estado, tomado pelo avanço do neoconservadorismo, será primeiro a sucumbir o “direito à saúde” a um “deve-se ter saúde”. Praticamente um mercado de trabalhadores-empresas vendendo o risco de se viver.


Referências
Leonardo Carnut é Professor de Sociologia, Estudos Sociais e Pesquisa Qualitativa da Faculdade de Odontologia da UFMG.

Áquilas Mendes é Professor de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP.
  
AROUCA, S. O dilema preventivista: Contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz/Unesp.2003.

BADINELLI, I.F.; JUNQUEIRA, L.F. Uso das propagandas farmacêuticas do século XIX e XX como fontes para o ensino da história: um relato de experiência. EntreVer, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 35-45, 2012.

BAUER, M.W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão. BAUER, M.W; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. 8ª. Edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000, p. 189-217.

CALDAS, C.O. A teoria da derivação do Estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões, 2015.

CAMPOS, G.W.S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 219-230, 2000.

CARNUT, L. Pensamento social em saúde na América Latina: a contribuição de Floreal Antonio Ferrara à Saúde Coletiva no Brasil. Projeto de Pós-doutorado – Universidade de São Paulo – Faculdade de Saúde Pública. 2017.

CARNUT, L.; MENDES, Á.; MENDES, S.J. A relação entre teoria política marxista e Saúde Coletiva: percepção de trabalhadores em um processo de (de)formação crítica. Anais VIII Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo, p. 1-10. 2018.

CARNUT, L.; NARVAI, P.C. Avaliação de desempenho de sistemas de saúde e gerencialismo na gestão pública brasileira. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 290-305, 2016.

CORREIA, M.O.G. Por uma crítica imanente sobre os limites das políticas públicas de direitos sociais e o Estado na produção do bem comum no modo de produção capitalista. Saude soc, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 55-65,  2015.

MENDES, Á. A saúde pública brasileira no contexto da crise do Estado ou do capitalismo? Saúde e Sociedade. São Paulo, v.24, supl.1, p.63-78, 2015.

NOGUEIRA, R.P.; GOMES, R.M. Capitalismo e Saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2012.

MENDES, Á. Os impasses dos direitos sociais trabalhistas e do financiamento da seguridade social e da saúde brasileira no capitalismo contemporâneo em crise. In: SOUZA, H.S.; MENDES, Á. (Org.). Trabalho e Saúde no Capitalismo Contemporâneo: enfermagem em foco. 1ed.Rio de Janeiro: Doc Content, 2016, v. 1, p. 15-41.

OLIVEIRA, J. Reformas e Reformismo: “Democracia Progressiva” e Políticas sociais (ou “Para uma teoria política da Reforma Sanitária”). Cadernos de Saúde Pública, v. 4, n.3, p.360-387, 1987.

PAIM, J.S.; ALMEIDA-FILHO, N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas?  Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 32, n. 4, p. 299-316, 1998.

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TEIXEIRA, S.M.F. (Org.). Reforma sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Cortez, 1989.

TESTA, M. Pensamento estratégico e lógica de programação: o caso da saúde. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Abrasco. 1995.


3 comentários:

  1. olá.

    Quais são os principais elementos responsáveis pelos grandes problemas que a população enfrenta, referentes aos programas de saúde coletiva e popular que o sistema público oferece em nosso país, como por exemplo, o programa SUS ?

    Vanderlei Costa de Sousa

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  2. Oi Vanderlei, Tudo bem? Espero que sim!

    Agradecemos a pergunta.
    Bem, em tese, nosso texto não trabalha exatamente sobre quais os elementos responsáveis pelos problemas que a população enfrenta com o SUS.
    Na realidade, o texto foca em uma parte da história da trajetória do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira que não é ensinada nos cursos de saúde (por diversos motivos).
    Dentre eles está a discussão política inicial entre vários membros do movimento sanitário sobre "tese socialista", ou seja, a tentativa de alcancar o socialismo via aparelhamento do Estado. Os sanitarista, à época, acreditavam que as condições sócio-históricas daquele momento permitiriam que um "movimento setorial" como era o RSB pudesse, ao decorrer a história, impulsionar essa passagem. Bem... essa tese foi refutada logo de início, e é isso que não é ensinado nos cursos de saúde. Ou seja, parte importante da nossa história é propositalmente esquecida gerando o reforço da perspectiva eminentememte socialdemocrata do SUS, que hoje, padece dessa escolha política.
    Abcs

    Leonardo Carnut

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  3. Vanderlei, bom dia! É interessante que possamos esclarecer, antes de tudo, que o Sistema Único de Saúde (SUS) não é um programa, como mencionado no primeiro parágrafo de nosso artigo. Trata-se de nosso sistema nacional de saúde, concebido pelo Movimento da Reforma Sanitária Brasileira nos anos 1980, em plena luta pelo retorno da democracia. Esse movimento conseguiu um avanço institucional do sistema de saúde, introduzindo o artigo 196 da Constituição: "a saúde é um direito de todos e dever do Estado". A execução do SUS por meio das três esferas de governo se faz pela formulação e implementação de programas de saúde nos diversos níveis de atenção à saúde - atenção básica, média e alta complexidade. Bem, mas a sua pergunta é importante porque ao longo de implementação do SUS alguns entraves foram colocados prejudicando o desenvolvimento desse sistema. Podemos citar um problema significativo: o subfinanciamento do SUS. Esse refere-se a ausência de recursos financeiros suficientes para responder à universalidade da saúde e fontes indefinidas e inseguras. O SUS apresenta um gasto público de 3,9% do PIB, enquanto outros países com sistema universal de saúde investem 8,0%, considerando apenas o gasto público. Esse exemplo já demonstra que o gasto público no Brasil é baixo e prejudica a execução do SUS. Além disso, com a introdução da Emenda Constitucional n. 95/2016, foi aprovado o congelamento do gasto público por 20 anos no país, o que tenderá a agravar ainda mais o subfinanciamento, vindo a se configurar um desfinanciamento. É por isso que o nosso trabalho buscar resgatar as ideias da construção de autores-chave do Movimento da Reforma Sanitária. O ensino da história das ideias busca aprender com o passado para iluminar as decisões do presente sobre o futuro "cinzento".

    Áquilas Mendes

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