OS ESTUDOS E A ESCRITA NOS CONVENTOS
FEMININOS EM PORTUGAL NA ÉPOCA MODERNA (SÉCULOS XVI E XVII)
Na época Moderna,
notadamente em Portugal nos séculos XVI e XVII, uma das funções da escrita
dentro dos conventos femininos era a de auxiliar no cumprimento das obrigações
cotidianas com relação à administração do convento/mosteiro e de algumas
tarefas, tais como: a composição de relatos sobre a fundação das ordens e das
casas conventuais e o registro de testemunhos orais das outras religiosas
acerca do passado e do espaço conventual. Segundo Lígia Bellini,
“Desde a Idade Média, o domínio das letras foi uma via pela qual mulheres adquiriam autoridade e uma certa autonomia religiosa no universo cristão. A partir do século XVI, as possibilidades existentes no sentido de ocuparem posições menos subalternas na sociedade associavam-se, em grande medida, ao acesso à educação letrada, viabilizando principalmente no convento e na corte. Conquanto o papel que os conventos desempenhavam na fermentação intelectual não fosse mais tão importante quanto havia sido no período medieval, com a consolidação das universidades como centros de conhecimento por excelência, a educação monástica continuou tendo relevância para as mulheres. O treinamento era, sem dúvida, mais limitado do que havia sido no passado, ou do que ministrado nas universidades, na época, sobretudo no que se refere aos temas e textos estudados, mas algum latim e as línguas vernáculas continuaram a ser ensinados. No interior dos mosteiros, resguardadas das tensões econômicas e sociais do mundo secular, libertas das funções do casamento e da representação negativa da sua sexualidade, mulheres podiam dedicar-se a escrever textos religiosos, traduzir obras do latim para o vernáculo e trocar correspondências com os poderosos (BELLINI, 2006, p. 87).”
Nos conventos, os estudos proporcionavam as mulheres certa
autonomia dentro do universo cristo.
Eles se davam a partir da leitura, em voz alta no horário do almoço, ou,
durante alguns trabalhos em conjunto, de livros de Exercícios Espirituais,
vidas de santos, a Regra da Ordem, ou seja, livros que remetiam a uma visão de
mundo pautada pela ascese. Segundo Leila Mezan Algranti, esses livros
“[...] eram obras que se destinavam à pregação e difusão de uma doutrina de vida interior, bastante conhecidas na época, divulgadas pela Igreja [...] é possível, portanto, que esses livros fizeram parte de um núcleo básico de leituras essenciais para a boa formação moral espiritual dessas mulheres, o qual pouco se alterou entre os séculos XVI e XVIII (ALGRANTI, 2004, p. 53).”
Nas bibliotecas dos mosteiros femininos se encontravam
títulos que versavam sobre Teologia, Costumeiros e Cerimoniais e até mesmo
obras de cunho prático como livros de jardinagem, culinária e medicina. Segundo
Margarida Sá Nogueira Lalanda,
“[...] a leitura monástica constitui, pois, um meio para se caminhar no auto aperfeiçoamento com vista à santidade; ela é uma forma de mediação entre a vida terrena e o céu espiritual, entre a imperfeição humana e o paradigma de comportamento que se almeja (LALANDA, 2014, p. 63).”
A partir do ideário da Contrarreforma Católica, em que “[...]
veio acentuar, em termos espirituais, a religião como opção de vida, ao lado
dos exercícios de penitência e da ideia das obras meritórias, justificando o
próprio estado monacal (CONDE, 2012, p. 399)”, fez uso de recursos escritos,
orais e visuais com o proposito de orientar as condutas da sociedade do Antigo
Regime ao discurso moral e doutrinal do catolicismo. Segundo Frederico Palomo,
“[...] Os livros de devoção, catecismos, imagens, sermões, vidas de santos, peças dramáticas, procissões, missões no interior, confissões, toda a sorte de instrumentos e mecanismos de carácter mais ou menos institucional, mais ou menos informal, permitiam elaborar, articular, difundir e, sobretudo, impregnar a sociedade e os sujeitos com os ditames da ortodoxia contra-reformista, favorecendo assim a interiorização de certos modelos de conduta, bem como, indirectamente, o desenvolvimento de formas impensadas de obediência (PALOMO, 2006, p. 57).”
Nesse sentido, através do gênero da literatura didática e
espiritual surgiu o modelo da Perfeita
Religiosa, que se baseavam em prescrições para a manutenção da vida em
castidade. Antónia Fialho Conde enumera tais prescrições através do castigo aos
cinco sentidos:
“[...] olhos baixos para mortificar a vista; alimentos grosseiros, para mortificar o gosto; silêncio para mortificar a audição; vestidos rugosos e leitos duros, para mortificar o tato; escrúpulo mesmo de cheirar uma flor, para mortificar o olfato (CONDE, 2015, p. 93).”
A mesma autora também evidencia a atuação do Padre Manuel
Bernardes que descreve um perfil ideal de religiosa, realizando assim uma apologia da boa freira. Em sua concepção
uma freira deveria ser:
“[...] pobre, que rezava e observava a Regra; que era pontual no Coro e mais atos da comunidade; que ouvia missa e lia livros devotos; que cumpria as obrigações do ofício; que visitava e servia as enfermas; que fazia penitências; que ajudava com os sufrágios as almas do Purgatório, e que, enfim, trabalhava na almofada ou no bastidor e nas coisas necessárias na cela (CONDE, 2015, p. 92).”
Tais escritos disseminavam exemplos de virtude e santidade
que seriam passíveis de imitação tanto por leigos quanto por religiosos (as),
no esforço de assemelhar as práticas diárias ao modelo ideal de Cristo. Dentro
dos conventos, estas leituras eram tidas por obrigatórias constando nas Regras
e Constituições. Consideradas obras com função educativa em prol da formação moral
e espiritual, disseminavam uma percepção de mundo marcada pela ascese. Esta
literatura santoral representava as mudanças tridentinas, de afirmação e
divulgação doutrinal, e também o reflexo do movimento de reforma das ordens
monásticas, no início da modernidade, pois como enfatizou Moreno Pacheco é no
início do século XV que há as primeiras tentativas de reformas por parte dos
beneditinos e alguns núcleos franciscanos (PACHECO, 2007, p. 4). Leila Algranti
salienta que a regra das carmelitas era bem específica quanto à leitura, seja
ela de cunho individual ou coletiva (ALGRANTI, 2004, p. 58). Na regra é
discriminado o horário para a realização desta atividade, bem como os tipos de
livros:
“[...] empregarão as religiosas o tempo que lhes sobrar depois de sair das Vésperas em leitura espiritual até as três [...], e nesta leitura se empregue uma hora. Nos dias de jejum de Quaresma se fará essa leitura de duas as três, gastando nela pelo menos meia hora. [...] Cuidará muito a prelada que não faltem no convento livros espirituais: convém a saber: Flos Sanctorum, Contemptus Mundi, as obras do Venerável Luís de Granada, de São Pedro de Alcântara, do Padre mestre de Ávila e sobretudo da nossa mãe Santa Teresa e outros semelhantes; porque esta leitura não é menos necessária para alimentar o espírito, do que o comer corporal para alimentar o corpo (ALGRANTI, 2004, p. 58, 59).”
Com a reiteração da veneração aos santos, durante a vigésima
quinta sessão do Concílio de Trento (1545-1563), impulsionou em Portugal um
amplo leque de publicações de cunho religioso, na qual destacam-se o Flos
sanctorum do Frei Diogo do Rosário, publicado em 1567, o Flos sanctorum nuevo de Alonso de
Villegas datado de 1578, O Jardim de
Portugal, publicado em 1626,
de autoria do Frei Luís dos Anjos e Portugal ilustrado pelo sexo feminino
de Diogo Manuel Aires de Azevedo editado no ano de 1734. De acordo do Leila
Mezan Algranti, vários desses livros foram reeditados diversas vezes durante os
séculos XVI, XVII e XVIII, para atender a demanda de leitores que buscavam
escritos com o objetivo de fortalecer a fé (ALGRANTI, 2004, p. 97).
A escrita também teve uma função importante dentro dos
mosteiros femininos. Uma das funções da escrita era para o cumprimento das obrigações
cotidianas da casa monástica e de tarefas como relatar sobre a fundação das
ordens e das casas e registrar os testemunhos orais recolhidos de religiosas de
mais idade acerca de sua vida conventual, bem como também do espaço a que
estava inserida. Os textos edificantes era um outro tipo de escrito realizado
pelas freiras, bem como peças teatrais de cunho espiritual e também a
realização de cópias ou traduções de livros tidos como exemplares.
“A atividade intelectual se refletiu principalmente em nos escritos literários religiosos, aumentando no final do século XVI e nos séculos seguintes. A maioria das obras foram escritas por freiras, quer por sua própria iniciativa ou a pedido de seus confessores. Grande parte das obras foram encaminhadas para publicação como uma literatura que propõe um espelho de vida virtuosa as mulheres.(tradução nossa) (BALTASAR, 1998, p. 135).”
Maria Dolores Pérez Baltazar catalogou os escritos feitos
por freiras da Ordem de Santa Clara em nove gêneros, dos mais variados
(BALTASAR, 1998, p. 137,138):
1. Hagiografias
2. Biografias
e Autobiografias
3. Crônicas
4. Poesia
5. Epístolas
6. Tratados
de Ascética e Mística
7. Tratados
de Teologia
8. Relatos
de Viagens
9. Composições
Musicais
A escrita empreendida pelas religiosas se dava a partir do
contato destas com seus confessores que as instigavam a relatar suas
experiências religiosas de modo a prescrever modelos de conduta e virtudes
cristãs que deveriam ser buscados pelas mulheres de qualquer estrato social,
tendo como principais a castidade, honestidade e recolhimento (FERNANDES, 1999,
p. 19). Tais escritos traziam luz as características do movimento da Devotio Moderna.
A crônica foi um gênero de escrita com grande adesão no
período, pois poderiam tratar de assuntos variados como a criação dos conventos,
dos desafios enfrentados pelas freiras no momento da fundação, questões
econômicas, vida doméstica, vida das religiosas, etc. Geralmente ficava a cargo
de uma das fundadoras do convento e depois era repassado a outras freiras para
que essa memoria conventual não se perdesse, exaltando seus feitos e sua ordem.
“Da autoria das religiosas, ou de eclesiásticos ligados aos conventos, estas crónicas constituem propaganda religiosa: o quadro de aberta concorrência, e por vezes altamente conflitual entre as diferentes ordens religiosas levava a que o autor, quase sempre um membro da própria ordem, exaltasse a história do convento ou da ordem, multiplicando os relatos de milagres, elogiando os tesouros acumulados na sacristia e escrevendo biografias encomiásticas dos seus pretéritos religiosos (SÁ, 2011, p. 287).”
A poesia também foi um gênero muito difundido nos conventos
da época moderna, na qual podemos observar, como nas crônicas, uma variedade de
temas, inclusive temas profanos, como poemas de corte, cavalheirescos e até
poesias eróticas.
“No caso português, Morujão atribui a emergência de um considerável número de impressos de autoria de religiosas no estreitamento da “relação de muitas solicitações que durante alguns séculos ligou aos conventos femininos à corte”. Segundo a autora, a origem conventual das produções lhes conferia grande credibilidade nos círculos sociais da Corte. Esta produção, a par dos conteúdos de caráter religioso, inclui poesia laudatória e de circunstância (BELLINI, 2006, p. 85).”
As biografias e autobiografias tratavam das trajetórias de
vida na fé e virtudes das religiosas, ou experiências místicas e contato com o
divino, ou seja, uma espécie de literatura edificante, na qual temos por
principal nome a Santa Teresa d’Ávila ou Santa Teresa de Jesus (1515-1582).
Leila Mezan Algranti salienta que as biografias e autobiografias,
“Representam um gênero de escrita muito popular na Europa moderna, cujo auge em Portugal se situa no século XVII. Muitas delas são obras eminentemente místicas, e sua importância reside fundamentalmente no fato de terem sido escritas nos claustros femininos, dirigidas às mulheres que neles viviam, e também pelo que revelam do quadro social da época. Por esses escritos é possível recriar o cotidiano conventual, as condições de vida das mulheres dentro e fora das clausuras, os dramas íntimos e a cultura religiosa do período (ALGRANTI, 2004, p. 67).”
Em síntese, tais leituras, estudos e escritos que foram realizados
por religiosas enclausuradas refletiram, primeiramente, os ideais de pobreza,
castidade, obediência, objetivos estes perseguidos pelas comunidades na busca
pela espiritualidade e pela virtude, e, ao mesmo tempo, combater os vícios
mundanos. Em segundo lugar, por anseio de autonomia e vontade de aprender, o
que era amplamente renegado as mulheres do período que estavam fora dos
claustros. E porque também não dizer
como um meio de contato com o mundo profano a que “tanto temiam”?
Referências
Alex Rogério Silva é Mestre em História e Cultura Social
pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FCHS – da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Franca. E-mail para contato: alex465@gmail.com
ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura:
ensaios de História do Livro e da Leitura na América Portuguesa (1750-1821).
São Paulo: Hucitec:Fapesp, 2004.
BALTASAR, María Dolores Pérez. Saber y creación literária:
los claustros femininos em la Edad Moderna. Revista Cuadernos de História Moderna. Madrid, Servicio de
Publicaciones Universidad Complutense, vol. 20, 1998. Disponível em: http://revistas.ucm.es/index.php/CHMO/article/viewFile/CHMO9898120129A/23326. Acesso em: 22/09/2016.
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Sabemos que na Europa do século XVII, a mulher que se tornava reclusa em um convento, não o fazia, na maioria dos casos, por vontade própria. Na maioria dos casos eram obrigadas pelos pais, ou, como não tinham direito a receber herança que era herdada pelo filho mais velho da família, caso não conseguissem um marido, o convento era uma forma de sobrevivência para tais mulheres. Realidade totalmente diferente das freiras atuais em virtude das conquistas alcançadas pelas mulheres ao longo do tempo.
ResponderExcluirQual relação podemos fazer entre os estudos realizados pelas mulheres nos conventos dos século XVI e XVII, que você retrata no seu texto, e os estudos das freiras nos conventos atuais? Existe uma relação entre esses estudos e a evolução dos direitos da mulheres? Podemos estabelecer uma importância maior para um ou outro período no que diz respeito a importância desses estudos realizados nos conventos para a evolução dos direitos da mulheres?
FRANCISCO NAZARENO BRASILEIRO DIAS